Ver um soi disant liberal a ir ao Marx com a desenvoltura que lhe é suposta em Rawls ou Nozick é coisa louvável. Ainda que, todos sabemos, o velhote sempre tenha tido as costas largas. O que me interessa ali é aquela frase subtilmente lapidar, que, pela técnica de escrita, cola-se ao leitor mais desprevenido como se de uma evidência se tratasse:
"E não há diferença sem conflito."
Ora, é daquelas coisas que, como dizem os franceses, il ne va pas de soi. Com efeito, é de toda uma velha e bafienta leitura de Marx que se parece tratar, à imagem do que foi, décadas antes, a leitura torpe que pretendia colar Nietzsche a algumas posições de direita radical, e que toda uma geração de intelectuais e filósofos, principalmente de origem francesa e italiana, se empenhou a desmontar ao longo dos anos 60, ao mesmo tempo que o Hegel de alguns marxistas (nomeadamente da Escola de Frankfurt) aparecia como mais conservador.
Assim, e pour aller vite, o nó górdio da questão está no estatuto ontológico atribuído à síntese hegeliana, lugar por excelência do trabalho do negativo, motor do sistema regido pela negação dos contrários, e isto significa fazer depender (ontologicamente) a diferença do negativo. Foi justamente esta dependência que a empresa deleuziana de uma ontologia da diferença visou suplantar, tentando pensar a diferença na sua primazia ontológica como eminentemente afirmativa e criadora (e, portanto, positiva). Isto reveste-se de uma enorme importância - para dar um só exemplo, sensível ao autor - se perspectivado em relação estrita com as possibilidades da construção europeia e como máquina de resistência às lógicas identitárias que, por estes dias, ainda grassam pelas cabecinhas iluminadas dos nossos governantes e dos burocratas de Bruxelas (veja-se por exemplo a política de imigração que Sarkozy quer fazer vingar - Foucault já dizia, há trinta anos atrás, que um dos maiores problemas da Europa iria ser o da imigração - e a absurda Directiva 18 vergonhosamente aprovada na sede da União).
Quer-se, pois, um Marx capaz para pensar o séc. XXI e os desafios que este nos coloca. Deleuze já não o fez, embora, à altura do seu suicídio em 1995, começasse a preparar um La Gloire de Marx. Mas fazem-no uma nova vaga de pensadores (T. Negri; E. Balibar; Y.M. Boutang; M. Tronti; etc) que trocaram Hegel por Espinoza para principal interlocutor. Uma Europa possível, uma outra Europa poderá passar por aqui. De qualquer forma, de uma coisa estou convencido, ou a Europa se faz como espaço privilegiado da diferença (que lhe é constitutiva), ou elle ne sera pas.