Pintada de noite, a revolução devém mitologia. A condensação dos acontecimentos do Maio de 68 numa noite não é, pois, inocente; a noite alberga os desejos mais recônditos, a vontade mais fervorosa, é o espaço do onirismo mais profundo, da penumbra da consciência, da liberdade dos corpos: Liberté, la nuit. E nessa noite, voltará a nascer François, pequeno Orfeu (Louis Garrel, filho do realizador, outro facto não inocente – Louis é um François que é Philippe). Para si e para o mundo. Da noite brota a esperança incomensurável na exigência comunitária, como escreveu uma das mais fortes penas da época, brota uma crença autêntica (de facto, podemos analisar o Maio de 68 como um acontecimento chave para percebermos aquilo que Deleuze chamou “a conversão imanente da fé”, isto é, a fé já não como veículo para o transcendente mas crença no mundo e na sua mudança) e, brota também, a descoberta do amor, no pequeno vislumbre de François e Lilie, entre as barricadas - aqui Garrel segue uma das mais velhas lições, já que, segundo o Fedro, o Amor seria quase tão antigo como o Caos.
Desde este momento começamos a ver o horizonte ambicionado pelo realizador: filmar a imanência radical do interior mais visceral e do exterior mais longínquo, da revolução pessoal à revolução comum, íntimo e político, como única fulguração espontânea das múltiplas libertações dessa noite épica.
O amanhecer ou a ressaca da inocência. Seguindo a metaestabilidade que vai do casal (François e Lilie, sempre acompanhados pela sulfurosa música de Jean-Claude Vannier) ao grupo, do grupo às massas e destas, de retorno, à solidão inultrapassável de François, é toda uma linha invisível que perfaz a (im)possibilidade de estar-em-conjunto, da ideia de comunidade. Ora, a luz da manhã que desperta, aclara a consciência e amansa os corpos, destabilizando esse feixe unificador. Essa manhã será o fim de uma inocência (por mais tempo que o grupo a queira prolongar), o desabar de uma fé na transformação. O olhar, à distância, a cesura original. Isso é notório, para citar uma cena, quando o mais idealista dos soixante-huitards volta a casa, e de manhã conta à mãe a desilusão que é ver a revolução contaminada por interesses burgueses, ao mesmo tempo que tira as botas sujas e as deixa junto ao sofá – e esse rapidíssimo raccord reenvia-nos directamente para as botas de Van Gogh. As próprias imagens de Garrel também sonham de outras imagens.
Tudo se passa, aliás, através de uma peculiar experiência do tempo. Seja em cenas que são autênticos coágulos de tempo, como nas barricadas, em que a lentidão é o ritmo primeiro e, no entanto, densamente povoada de acontecimentos quase infra-perceptivos, ou à volta da mesa no apartamento, em que o rigor de um detalhe sustém a passagem do tempo (Garrel foi, com certeza, espectador atento de Bresson); seja em movimentos em que a velocidade das elipses mais parece um salto de cavalo no xadrez: só os compreendemos pelas consequências, pelo rastro que fica para trás, pelo lugar vazio da ausência. Assim sendo, uma imagem, segundo Garrel, será sempre a (re)união de uma lago de memórias passadas na película dos olhos do presente. Desta maneira, a contemporaneidade do passado e do presente revela-nos um tempo não cronológico – porque anterior, mitologica e ontologicamente, ao nascimento de Chronos – verticalizando-o em acontecimentos absolutamente singulares. (A fabulosa fotografia de W. Lubtchansky não é de somenos importância para este resultado). Aquilo que se mostra é o tempo em estado puro, a imagem como diferenciador das possibilidades no/do mundo. Como se tudo se resumisse a um jogo de magia, à volta de uma mesa, entre avô e neto.
Tudo não passa de um sonho de revolução. Ou de uma revolução sonhada. Sendo que aqui sonho e revolução podem ser uma e a mesma coisa. E entre duas coisas que são o mesmo, o tempo que passa.