Das imagens e da chuva: Poi piovve dentro a l’alta fantasia. (Dante, Divina Comédia, Purgatório XVII, 2).
Do ponto e do movimento: Quand le point devient point de vue, l'espace est dans le point, c'est plus le point qu'est dans l'espace; c'est une espéce de révolution que Leibniz fait valoir contre Newton. (Deleuze, curso sobre Leibniz de 1987)
(acerca de um post sobre Naruse)
Ao pensar recomendar o ciclo Ouvir:Ver - A experiência do som no cinema, comissariado por Ricardo Matos Cabo, lembrei-me também da utilidade deste texto na folha de sala.
O automóvel e o cinema têm mais ou menos a mesma idade.
Luís Miguel Oliveira sobre Grand Torino.
Durante aquele jantar desastroso em que os dois pares se enfrentam, ele cita descadaramente o sineiro de "A caça ao Snark" – E, se o disse três vezes, é verdade! É uma das minhas frases favoritas de toda a literatura, assim como a que se segue, bastante mais tarde, durante o duelo a vodka, de Hölderlin, trabalhada por Heidegger, o ciumento, dita em alemão antes de cair na rede do teatro: "Wo aber Gefahr ist, wächst das Rettende auch" (Mas onde há perigo, cresce também o que salva). Podemos dizer o mesmo dos filmes de Rivette? Sim, podemos.
E podemos também brincar com a vida e com o amor. Aliás, não sabemos fazer outra coisa.
A Cristina sobre um dos meus filmes da primeira década do séc. XXI. Et la suite.
Alexandra, Aleksandr Sokurov
Antes que o Diabo Saiba que Morreste, Sidney Lumet
Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes
Corações, Alain Resnais
Os Amores de Astrea e Celadon, Eric Rohmer
The Darjeeling Limited, Wes Anderson
Este País Não é Para Velhos, Joel e Ethan Coen
Je veux voir, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige
Fome, Steve McQueen
Gomorra, Matteo Garrone
Ne Touchez Pas la Hache, Jacques Rivette
Quatro Noites com Ana, Jerzy Skolimowski
O voo do balão vermelho, Hou Hsiao-hsien
O Segredo de um Cuscuz, Abdel Kechiche
El Cant dels Ocells, Albert Serra
Ao pé desta capacidade de síntese, aquilo que chamo de pequenos textos (sobre grandes filmes) não apelará senão à sonolência.
Fiz as contas e resolvi comprar o Livre Trânsito; vou experimentar — mais ou menos — o que é ter uma cinemateca à porta de casa (como no saudoso "Olhar de Ulisses"). E espero, sinceramente espero, encontrar no auditório de Serralves (260 lugares), ao longo destas sessões, as muitas pessoas que assinaram aquela petição (até agora 4373). Ontem à noite não apareceram (Rebecca é de 1940 e perder um filme de Alfred Hitchcock numa sala de cinema é, pelas minhas regras autoritárias, um crime). Talvez se estejam a guardar para experiências mais duras? É uma pena reduzir a política a palavras vãs e quando chega uma oportunidade (alguém duvida que a frequência deste ciclo pode ajudar a perceber a viabilidade de uma cinemateca no Porto?) falta a acção necessária e tão simples: ver e rever a projecção dos filmes. Apenas isso, para conversa balofa bastam os funcionários dos partidos, não é?
A gentil Cristina diz tudo, na justa medida. Os sublinhados são meus.
Todo o plano é para o rosto dela - mas ela nunca olha para a câmara, antes para um ponto qualquer no fora de campo, num ligeiro viés. Em vez de acusar a sua presença, forçando a rapariga à extraordinária violência de a fitar directamente, a câmara evita intrometer-se na linha do seu olhar, faz o que pode para a deixar sozinha. E, com a mesma comoção e o mesmo orgulho, fica a observar uma miuda beirã a aproveitar o momento em que lhe ofereceram a possibilidade de ser uma Harriet Andersson ou uma Jean Seberg.
"Obliquamente", por Luís Miguel Oliveira
Aquele Querido Mês de Agosto é um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos.|...| Gomes capta sempre a materialidade manipulada de que se faz o cinema, e que desemboca no gag final sobre os sons que se ouvem no filme mas que não existem «na natureza». Em Aquele Querido Mês de Agosto, a «ficção» (quase uma réstia) não é verdadeiramente uma ficção, é um simples melodrama juvenil, muito eficaz precisamente porque muito «verdadeiro». Tão verdadeiro e acima do bem e do mal como a própria música pimba que Gomes escolheu. Uma música que enquadra sem ironias aquelas emoções cruas e «pouco sofisticadas». Que são afinal iguaizinhas às nossas.
Se isto não é o povo, onde é que está o povo?, por Pedro Mexia
Em geral, e por grosso, Miguel Gomes dá-nos a ler versos. Seria um longo debate saber se nos dá a ler poemas, pelo que me fico pela versão empírica ou, se se preferir, de mercearia: versos. Versos de canções pimba, esclareça-se. Porque o génio de MG não está apenas na utilização da música pimba como banda sonora do filme, e aliás muito para lá disso. Está sim na estranha operação, semiótica e estética, que consiste em inscrever nas imagens sempre tão justas do seu filme a letra das canções que o percorrem, ilustram e, ainda, o narram, suturam e dão a ver.
O balão jubiloso de Tânia faz-nos, mais uma vez, acreditar na possibilidade e potência do amor, e momentaneamente (pelo tempo justamente necessário) esquecer como tudo isto é produto de uma canção que nos pede aquilo que, desde que crescemos, sabemos ser pouco possível: que abracemos o mundo. Desde a esfusiante sequência de Nanni Moretti em Querido Diário, bailando, na sua vespa, ao som de canções, pelas ruas de Roma, que o cinema não era esta coisa elementar e mozartiana, tão intensamente e melancolicamente feliz.
Quem parasita quem em Aquele querido mês de Agosto? A «parte ficcional» parasita a «documental», como pretende a maioria da crítica? A produção, e o realizador em particular, parasita as pessoas da zona que convoca, usa (e abusa?) para a representação? O cowboy, e o beat, parasitam Moleiro? Miguel Gomes parasita Rossellini? A cidade, de onde vem e onde se «faz» institucionalmente o cinema, parasita o campo? As canções parasitam a pureza da captação do som do vento, dos regatos e dos trinados das aves nas serranias? Perguntas ociosas que de súbito se tornam fundamentais, ou perguntas fundamentais, sem as quais não há cinema (ou arte), que o filme torna ociosas, dando a ver a sua banalidade de base? Ou antes, e se calhar, perguntas morais, às quais só podemos responder, como sempre em arte, de forma extra-moral. Porque, como é evidente, o grande paradigma do parasita ou do bobo da corte é, muito simplesmente, o artista.
Aquele querido mês de Agosto, I, II, III, IV, por Osvaldo Manuel Silvestre
Por causa deste belíssimo texto, o Osvaldo Manuel Silvestre lançou o repto n'Os Livros Ardem Mal. Assino por inteiro.
Estreou hoje no circuito comercial Aquele querido mês de Agosto, a segunda longa metragem de Miguel Gomes, que merece toda a atenção, tratando-se, tão só, de um dos melhores filmes portugueses dos últimos anos. Amanhã, o filme é capa do Ípsilon com respectivo dossier.
Relativamente a esta pergunta (lícita, absolutamente) -
Nalguns momentos, é lícito perguntar se estes textos mesmo sobre cinema, no mesmo sentido em que também perguntamos isso sobre os célebres livros de Deleuze; com efeito, Zizek usa e abusa dos filmes, fazendo digressões imprevisíveis e colagens de ideias estonteantes.
- dizer, tão somente, que não sendo nenhuma das digressões (a de Deleuze e a de Žižek) livros sobre cinema (no seu sentido mais vulgar), um abismo as separa: Žižek faz um tratado de antropologia de abordagem psicanalítica, enquanto que os dois volumes de Deleuze seriam o penúltimo passo decisivo na construção de uma ontologia que, justamente, deitaria por terra (entre outras coisas bem mais incrustadas no subsolo dogmático do pensamento ocidental) toda a pretensão antropologista.
P.S. Referir ainda, en passant, que quando Deleuze dizia que era necessário e benéfico haver leituras e apropriações não-filosóficas da filosofia (inclusive da sua), estava também a dizer o mesmo em relação a criações não-artísticas e não-científicas da filosofia a partir destas.
O olhar do outro como testemunha. Catherine Deneuve em Je veux voir de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige.
Já regressado de Vila do Conde não posso deixar de tentar esboçar sentidos de algumas imagens que, de alguma maneira, resistem. Como sou guloso saboreio bastante antes de engolir (ou a maneira de funcionar do espírito ruminante segundo Nietzsche).
O festival acabou com um objecto cinematográfico absolutamente contemporâneo. Je veux voir de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige nasce de "um sentimento de urgência", tempo vertical à procura de imagens que o consigam absorver. Numa entrevista a Claire Vassé os cineastas questionam-se que fazer e como face às "imagens espectaculares da televisão", paradoxalmente irreais e com um efeito calmante e anestésico*, que imagens para tal realidade (a devastação provocada pela guerra), que imagens para uma coisa que está aqui, que entra por nós adentro e que, ao mesmo tempo, é inapreensível e inapropriável?
Deneuve diz que não sabe se vai "entender alguma coisa, mas quer ver". O tour de force feito neste filme que se constitui em pôr o outro no coração do real (a ficção como único acesso possível a uma imagem real), dar a ver com e através do outro, dota o filme, no extremo limite da ficção e para lá de toda a pretensão realista, de uma realidade que de tão distante pertence a todos nós. Face à apaziguadora neutralidade das imagens televisivas que dão conta da realidade, querer ver nos olhos do outro.
Aquilo que se quis ver, a urgência de outros olhos (os olhos do mundo) está nas imagens finais, na "partilha de sensibilidade" entre Catherine e Rabih, na possibilidade dessa partilha, no olhar como possibilidade.
*José Gil, no congresso internacional Culturas, Metáforas e Mestiçagens (Évora, Maio de 2004), no qual também participei, pensou de forma tão urgente como genial as condições da experiência real da recepção das imagens de guerra. Infelizmente ainda inédito.
Ontem, o acontecimento denominava-se Martin Arnold (n. 1959), cineasta de Viena, dotado de um experimentalismo na linha do seu conterrâneo Peter Tscherkassky ou do belga Nicolas Provost, ambos já focados no Curtas em anos anteriores. A masterclass serviu de introdução ao seu modus operandi, apoiada com o visionamento de algumas das suas curtas. Seguiu-se uma visita guiada pelo próprio à sua exposição na Solar, de que falarei mais tarde.
Durante todo o dia de hoje tive que me ausentar do festival e, por isso, infelizmente perdi a masterclass de Yu Lik-Wai que deve ter sido um óptimo complemento à retrospectiva da sua obra que acontece até sábado. Volto logo à noite.
P.S. Se, no domingo, diverti-me uns instantes a tentar perceber quem poderia ser a C., antes do começo do filme,desde ontem a blogosfera conta com mais um representante.
Depois do meu atraso crónico no primeiro dia do festival (sábado, 05), o dia seguinte pautou-se essencialmente por duas agradáveis surpresas que consistiram na amostra da cinematografia de Lisandro Alonso (n. 1975, Buenos Aires) e na primeira longa-metragem de Liew Seng Tat (n.1979, Malásia), outro nome a reter no panorama criativo do novo cinema asiático.
Ontem, e depois da primeira sessão da competição internacional, assistiu-se ao primeiro grande momento do festival, com a ante-estreia em Portugal do filme de Miguel Gomes (n. 1972, Lisboa) Aquele querido mês de Agosto (Quinzena dos Realizadores, Cannes'08), visão inspirada do país profundo, filmada no limite do registo documental e da ficção, que, dissolvendo as duas fronteiras, se revela, nos melhores momentos, uma tragicomédia de contornos absolutamente singulares. Ficamos, pois, à espera do percurso comercial que um objecto desta natureza pode fazer no nosso país. A noite acabou, seguindo a recomendação do próprio realizador, e dando seguimento ao espírito do filme, num confronto de karaoke com programadores do festival, casting do filme, realizadores convidados, júris e participantes cinéfilos. Mais uma querida noite de verão na província, portanto.
Esta tarde já teve mais dois focos do meu interesse, isto é, mais dois filmes de mais dois novíssimos realizadores asiáticos (não é coincidência): a segunda longa de Lee Kang-Cheng (n. 1968, Taipé), actor-fetiche e discípulo de Tsai Ming-Liang, de que espero poder escrever em debate com a obra do mestre, nomeadamente com a instalação que este traz ao festival, Erotic Space; e o arranque da primeira retrospectiva integral na Europa da obra de Yu Lik-Wai (n. 1966, Hong Kong), com All Tomorow's Parties, que revela já toda a potência imagética do cineasta, mas de que só falarei no fim do ciclo.
Agora tenho mesmo que ir, porque a festa continua.
Parto, dentro de momentos, para Vila do Conde, para acompanhar o 16º Curtas - Festival Internacional de Cinema que decorrerá até ao próximo dia 13 de Julho. Há muitas (mas muitas) coisas boas este ano, aliás, como já se tornou hábito. Prometo, se as ligações à web ajudarem e o caos constitutivo neste tipo de coisas não se intrometer demasiado, ir dando conta do que se passa. Senão, digo de minha justiça quando voltar. Até já.