[377] O célebre Leibniz obteve muitos conhecimentos efectivos com os quais enriqueceu as ciências, mas ainda tinha mais ambiciosos projectos, cuja realização o mundo esperou dele em vão. Não quero aqui propor se as causas disto mesmo assentam no facto de as suas tentativas lhe parecessem demasiados incompletas, modéstia própria dos homens de mérito e que privou o conhecimento de todos os tempos de valiosos fragmentos, ou se com ele se passou aquilo que Boerhaave dizia dos grandes químicos, que alegavam frequentemente poder obter resultados como se estivessem na posse dos mesmos, quando, em rigor, encontravam-se apenas convencidos e seguros na sua capacidade técnica para produzi-los, cuja execução não poderia falhar se a quisessem empreender. Pelo menos, parece que uma certa disciplina matemática, que ele antecipadamente intitulou de analysis situs, e cuja perda foi lamentada, entre outros, por Buffon, ao considerar as dobras naturais nos embriões, nunca passou de uma ambição. Não sei ao certo em que medida a temática que aqui me disponho considerar tem afinidades com o que o grande homem mencionado tinha em mente, a julgar apenas pelo sentido das palavras; procuro aqui, filosoficamente, o primeiro fundamento de possibilidade daquilo cujas grandezas ele tencionara determinar matematicamente. Pois a situação das partes do espaço nas suas relações recíprocas pressupõe a região em função da qual estão ordenadas segundo uma tal relação e, no sentido mais abstracto, a região não consiste na relação de uma coisa no espaço com uma outra - o que corresponde, mais propriamente, ao conceito de situação -, mas na relação do sistema destas situações com o espaço absoluto do universo. Em tudo o que seja extenso, a situação das suas partes, umas em relação às outras pode ser suficientemente conhecida pela análise da própria coisa extensa; mas a região para a qual essa ordenação das partes está orientada refere-se ao espaço fora dela e, na verdade[378], não aos seus lugares, pois isso não seria mais do que a situação das mesmas partes, encaradas numa relação exterior, mas remetendo-as a um espaço comum, enquanto unidade da qual essa extensão deve ser considerada como uma parte. Não seria estranho que o leitor achasse estes conceitos ainda demasiado incompreensíveis, os quais, desde logo, devem ser iluminados no que se segue, pelo que, nada mais acrescento, senão que o meu objectivo neste ensaio será o de investigar se nos juízos intuitivos da extensão, como os que contém a geometria, não se encontraria uma prova evidente de que o espaço absoluto, independentemente da existência de toda a matéria e inclusive como primeiro fundamento da possibilidade da sua composição, tenha uma realidade própria. É bem sabido como se revelaram em vão todos os esforços dos filósofos no sentido de colocar de vez este ponto à margem de qualquer disputa mediante os juízos mais abstractos da metafísica, e não conheço nenhuma tentativa de realizar isso como que a posteriori (a saber, através de outras proposições irrefutáveis, que na verdade se encontram elas mesmas fora do domínio da metafísica, mas podem fornecer in concreto uma prova para a sua correcção), com a excepção da dissertação do célebre Euler, o velho, na História da Academia Real de Ciências de Berlim, de 1748, que, contudo, não alcançou completamente o seu propósito, pois apenas mostra as dificuldades de se dar um significado determinado às leis mais gerais do movimento se não se aceita outro conceito de espaço a não ser aquele que procede da abstracção da relação entre coisas existentes, deixando, todavia, intocáveis dificuldades da mesma envergadura que resistem no que se atém à aplicação das leis em questão, se se quiser representá-las in concreto segundo o conceito de espaço absoluto. A prova que aqui procuro deve fornecer não aos mecânicos, como o senhor Euler pretendia, mas aos próprios geómetras uma razão convincente para que possam afirmar, com a evidência que lhes é habitual, a realidade do seu espaço absoluto. Para isso, apresento as hipóteses que se seguem.
No espaço corporal, por causa das suas três dimensões, deixam-se pensar três planos, que se interseccionam todos em ângulos rectos. Uma vez que conhecemos, por via dos sentidos, tudo o que está fora de nós somente à medida que se encontra em relação connosco, não é de estranhar que para gerar o primeiro fundamento do conceito de regiões no espaço partamos da relação destes planos de intersecção com o nosso corpo.[379] O plano perpendicular ao comprimento do nosso corpo chama-se, em relação a nós, horizontal; e esse plano horizontal despoleta a diferença das regiões que designamos por acima e abaixo. Sobre esse plano podem estar dois outros, perpendiculares e cruzando-se igualmente em ângulos rectos, de maneira que o comprimento do corpo humano é pensado na linha de intersecção. Um desses planos verticais divide o corpo em duas metades exteriormente similares e dá o fundamento da diferença entre o lado direito e o esquerdo; o outro que lhe é perpendicular, faz com que possamos ter o conceito do lado da frente e de trás. Numa folha escrita, por exemplo, diferenciamos primeiramente a parte de cima e de baixo da escrita, notamos a diferença dos lados da frente e do verso, e, por fim, vemos a situação da letra da esquerda para a direita, ou vice-versa. Aqui, a situação das partes ordenadas reciprocamente sobre a superfície é sempre a mesma e constitui-se numa figura inteiramente idêntica, podendo virar-se a folha como se quiser; mas a diferença das regiões tem tanta importância nesta representação e está tão estreitamente ligada à impressão que o objecto visível produz, que a mesma escrita torna-se irreconhecível quando vista de modo em que seja volvida da direita para a esquerda tudo o que antes assumia a região oposta.
Mesmo os nossos juízos sobre as regiões do espaço estão subordinados ao conceito que temos das regiões em geral, enquanto estas são determinadas na sua relação com os lados do nosso corpo. O que conhecemos de outro modo, no céu como na terra, em matéria de relações, independentemente deste conceito fundamental, são unicamente as situações dos objectos, uns em relação aos outros. Por mais perfeito que seja o conhecimento que tenho da ordem das linhas do horizonte, não posso, nem por isso, determinar as regiões, a não ser que tenha consciência da mão, segundo a qual essa ordem se processa. Se, pondo de lado o caso da situação das estrelas umas em relação às outras, ou não determinasse a região pela situação do plano de um mapa em relação às minhas mãos, esse mapa do céu, por mais preciso que fosse, por mais exacto que se apresentasse ao meu espírito, não me poria em estado de saber, partindo de uma região conhecida - do norte, por exemplo - de que lado do horizonte eu teria que procurar o nascer do sol. O mesmo se passa com o conhecimento geográfico e ainda com o nosso conhecimento mais comum da situação dos lugares, que de nada nos serve, se não podermos colocar as coisas desse modo ordenadas e o todo sistemático das [380] situações recíprocas numa relação com os lados do nosso corpo de acordo com as regiões. Existe mesmo uma característica assinalável nos seres vivos, que, ocasionalmente, pode até motivar diferenciações de espécie, que consiste na região determinada para a qual a ordem das suas partes está voltada e pela qual podem diferenciar-se duas criaturas, ainda que coincidam inteiramente tanto no que respeita ao tamanho, quanto à proporção e até na situação recíproca das partes. Os cabelos no alto da cabeça de todos os homens são voltados da esquerda para a direita. Todo o lúpulo enrosca-se da esquerda para a direita no seu caule; já o feijão volta-se no sentido contrário. Com a excepção de umas três espécies, todos os caracóis têm uma torção da esquerda para a direita, quando se olha de cima, isto é, do cume até à foz. Essa qualidade determinada reside invariavelmente nessas mesmas espécies de criaturas, sem relação nenhuma com o hemisfério onde as mesmas se encontram, nem com a orientação da rotação diária do sol e da lua, que para nós vai da esquerda para a direita, mas para os nossos antípodas vai ao contrário, pois nas produções da Natureza mencionadas, a causa da circunvolução repousa na própria semente. Por outro lado, onde uma certa rotação pode ser atribuída ao curso desses corpos celestes, como a lei de Mariotte sustenta pela observação dos ventos que, da aurora ao meio-dia, da esquerda para a direita, percorreriam completamente a bússola, passando-se este movimento circular no sentido inverso quando no outro hemisfério, como também Don Ulloa pretende ter efectivamente confirmado pelas suas observações sobre os mares do sul.
Dado que o sentimento diverso dos lados direito e esquerdo é de tal maneira necessário para o juízo das regiões, a natureza conectou-o simultaneamente à coordenação mecânica do corpo humano, por via da qual um dos lados, a saber, o direito, tem uma vantagem indubitável em agilidade e talvez também em força sobre o esquerdo. Eis porque todos os povos da Terra são destros (não se considerando excepções isoladas, as quais, como o estrabismo, não revogam a universalidade da regra de acordo com a ordem natural). É mais fácil mover o corpo da direita para a esquerda do que o contrário quando se monta o cavalo ou se atravessa um fosso. Escreve-se por toda a parte com a mão direita, e com ela [381] se faz tudo aquilo que exige habilidade e força. Contudo, assim como o lado direito parece ter vantagem sobre o esquerdo no que diz respeito à mobilidade, o esquerdo tem-na sobre o direito no que respeita à sensibilidade, se nos dispusermos a acreditar nalguns naturalistas, como por exemplo Borelli e Bonnet, afirmando o primeiro dos quais sobre o olho esquerdo e o segundo no que respeita ao ouvido esquerdo, que nestes o sentido é mais forte do que nas estruturas análogas do lado direito. Assim sendo, os dois lados do corpo humano, apesar da sua grande similaridade exterior, são suficientemente diferenciados por uma clara sensação, mesmo que não se considere igualmente as posições diferentes das partes internas e a batida perceptível do coração, quando a cada contracção deste músculo bate do lado esquerdo do peito com a sua extremidade num movimento oblíquo.
Kant, I. “Von dem ersten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume” (1768), Ak. II, pp. 375-383.