Ou da imagem deleuziana da investigação filosófica como sendo qualquer coisa que está a meio caminho entre o romance policial e a ficção científica.
Ou da imagem deleuziana da investigação filosófica como sendo qualquer coisa que está a meio caminho entre o romance policial e a ficção científica.
Jean-Luc Nancy deixa uma pista na abertura (in fine) do seu Ego Sum de 1979. E as pistas são para seguir.
O cinema é um milagre, o milagre de uma memória que não é de ninguém. Eu provavelmente também levaria o Ordet para uma ilha deserta.
Como se abre o espaço? Não resulta ele numa “localização”, e esta, por sua vez, através de um duplo modo de receber e de organizar?
Assim, localizar possibilita qualquer coisa. Deixa-se surgir do aberto que, entre outras coisas, possibilita a aparição na presença de coisas às quais a habitação humana se encontra reenviada.
De seguida, localizar prepara para as coisas a possibilidade de se pertencerem umas às outras, cada uma no seu lugar e a partir deste mesmo.
No desdobramento dual deste localizar tem lugar aquilo que dá lugar. A característica deste ter-lugar é esse dar lugar. Portanto, o que é o lugar, se a sua propriedade deve ser determinada pelo fio condutor da localização que liberta?
O lugar abre de cada vez uma região, na qual agrupa as coisas a partir da sua co-pertença <Zusammengehören> no seio desta.
No lugar faz-se o agrupamento no sentido do proteger que libera as coisas na sua região.
E a região? A mais antiga forma da palavra, em alemão, é «Gegnet». Esta nomeia a livre vastidão <die freie Weite>. Por ela, o aberto é remetido ao estado de deixar abrir e desabrochar cada coisa no seu próprio repouso. Isto quer dizer, ao mesmo tempo: tomar em atenção o (re)agrupamento das coisas na sua correlação <Zueinandergehören>.
Assim, a questão perfura: os lugares são pura e simplesmente resultado e produto do espaçamento? Ou, pelo contrário, o espaçamento recebe a sua propriedade (o que lhe é próprio) a partir do vigor dos lugares reunidos? Se nos aproximamos do verdadeiro, então teremos que procurar o próprio do espaçar na fundação <Gründung> de localidade, e pensar a localidade como conjugação <Zusammenspiel> de lugares.
Devemos prestar atenção ao facto e à maneira como este jogo recebe, a partir da vastidão liberta <der freien Weite> da região, o reenvio à co-pertença das coisas. Devemos aprender a reconhecer que as coisas são já de si os lugares – e não fazem senão estar situadas no seu lugar.
Neste caso, vemo-nos constrangidos à já antiga tarefa de focar um aspecto para lá da questão: o lugar não se encontra no interior de um espaço dado à partida, do tipo do espaço físico-técnico. Este último é que somente se desdobra a partir do vigorar dos lugares de uma região.
Torna-se necessário pensar a margem de reciprocidade <das Ineinanderspiel> entre a Arte e o Espaço, a partir da experiência do lugar e da região.
A Arte como plasticidade: não como um manuseamento do espaço.
A escultura não será um debate com o espaço.
A escultura seria então uma incorporação de lugares que, abrindo uma região e preservando-a, teriam reunidos à sua volta qualquer coisa de livre que permite a estadia a todas as coisas e habitação ao homem no meio destas.
Que devém, assim sendo, o volume das obras plásticas que a cada vez incorpora um lugar? Sem dúvida, não delimitará uns espaços em relação aos outros, nos quais as superfícies englobariam um interior fazendo aparecer, em contrapartida, um exterior. Aquilo que é nomeado “volume” deve perder o seu nome – já que a sua significação não é mais antiga que a moderna tecno-ciência da Natureza.
A procura de lugar e a modulação de lugar, características da incorporação plástica, continuariam, assim, sem nome.
E que surgiria do vazio do espaço? Mormente, este aparece só como uma falta. O vazio passa, então, por defeito de preenchimento de espaços ocos <Hohlräumen> e intervalares <Zwischenräumen>.
No entanto, provavelmente, o vazio é o irmão da propriedade dos lugares, e, por essa razão, não um defeito, mas um pôr-a-descoberto.
De novo, a língua pode dar-nos um sinal. No verbo «leeren» <esvaziar> fala o «Lesen» <Ler> no sentido original de “recolher”, o recolher que vigora no lugar.
Esvaziar o copo quer dizer: recolhe-lo mostrando-se a devir livre no seu ser.
Esvaziar de um cesto os frutos colhidos, quer dizer: preparar-lhe esse lugar.
O vazio não é o nada. Também não é uma falta. Na incorporação plástica o vazio joga de modo a procurar o estabelecimento dos lugares pela sua abertura.
Os apontamentos precedentes não conduzem, certamente, muito longe, para mostrar, desde logo, o próprio da escultura como género das artes plásticas com clareza suficiente. A escultura: uma incorporação que põe-em-obra lugares, e com estes uma abertura de regiões para uma possível habitação dos homens e uma possível estadia das coisas que os circundam e concernem.
A escultura: incorporação da verdade do ser na sua obra edificadora de lugares.
Um olhar cuidado sobre a propriedade da Arte deixa supor que a verdade enquanto desvelamento do ser não está necessariamente vinculada à incorporação.
Goethe diz: “Nem sempre é necessário que o verdadeiro se incorpore; basta que flutue pelos ares espiritualmente e se realize por uma electiva afinidade, que como o sincero soar uníssono preenche a atmosfera”.
Sobre a arte:
Holzwege, 1950, “Der Ursprung des Kunstwerkes”, erweitert in Reclams-Universalbibliothek Nr. 8446/47 1960.
Vorträge und Aufsätze, 1954, “Dichterisch wohnet der Mensch”.
Sobre o espaço:
Sein und Zeit, 1927, §§ 22-24, Die Räumlichkeit des Daseins.
Vorträge und Aufsätze, 1954, “Bauen – Wohnen – Denken”.
Gelassenheit, 1959, Aus dem Feldweggespräch über das Denken.
Para Eduardo Chillida Quando pensamos muito por nós próprios, encontramos muita sabedoria inscrita na língua. É certamente pouco verosímil que lhe transportemos tudo nós mesmos; porque efectivamente muita sabedoria está lá – assim como nos provérbios. G. Chr. Lichtenberg Δοκει̃ δέ μὲγα τι εί̃ναι καὶ χαλεπὸν ληφθη̃ναι ο̉ τόπος (“Parece ser qualquer coisa de grande importância, e difícil a apreender, o topos – i.é. o espaço-lugar.”) Aristóteles, Física IV
Estas notas a propósito da arte, a propósito do espaço, a propósito do entrelaçamento do seu jogo recíproco, são e continuam a ser questões, mesmo se são enunciadas sob o modo afirmativo. Elas limitam-se às artes plásticas, e mais precisamente à escultura.
O que a escultura forma plasticamente são corpos. A sua massa, consistindo em diversos materiais, é formulada multiplamente. A formulação tem lugar numa delimitação, que é inclusão e exclusão em relação a um limite. Desta maneira, o espaço entra em jogo. Ele é ocupado pela forma plástica, recebe a sua marca como volume fechado, volume atravessado de aberturas e volume vazio. Estado de coisas bem conhecido, e contudo repleto de enigmas.
O corpo plástico incorpora qualquer coisa. Incorporará o espaço? A escultura é um manuseamento sobre o espaço, uma dominação deste? A escultura responde assim à conquista científico-técnica do espaço?
Certamente, como arte, a escultura está em debate <Auseinandersetzung> com o espaço da arte. A arte e a técnica científica consideram e adaptam o espaço a partir duma intenção diversa e de maneiras diferentes.
Mas e o espaço – continua o mesmo? Não é este espaço que recebeu a sua primeira determinação de Galileu e de Newton? O espaço – esta extensão uniforme, do qual nenhum sítio é privilegiado, equivalente em todas as direcções, mas não perceptível pelos seus sentidos?
O espaço – que provoca entretanto, e numa medida crescente, sempre mais obstinadamente o homem moderno à sua dominação última e absoluta?
As artes plásticas modernas não obedecem também a esta provocação, na justa medida em que se compreendem como debate com o espaço? Não se encontram assim confirmadas no seu carácter actual?
Portanto, será que o espaço do projecto físico-técnico, qualquer que seja a sua possível determinação, pode assumir-se como o único verdadeiro espaço? Comparados com ele, todos os outros espaços adjacentes – o espaço da arte, o espaço da vida corrente com as suas acções e deslocações – são somente formas primitivas e transformações subjectivamente condicionadas da objectividade de um único espaço cósmico?
Que seria se a objectividade desse espaço cósmico fosse irresistivelmente o correlato da subjectividade de uma consciência perfeitamente estrangeira aos séculos que precederam a Modernidade europeia?
Mesmo reconhecendo a diversidade da experiência espacial nos séculos passados, adquirimos dessa maneira um primeiro olhar sobre a propriedade do espaço? A questão do que é o espaço como espaço não foi, por isso mesmo, ainda esboçada – e ainda menos solucionada. Continua confuso de que maneira o espaço é, e mesmo se, absolutamente, um ser lhe pode ser atribuído.
O espaço – faz parte dos Urphänomenen <fenómenos Originários> no contacto dos quais, segundo uma expressão de Goethe, quando os homens chegam a compreendê-los, uma espécie de temor que pode ir até à angústia os submerge? Dado que por trás do espaço, ao que parece, nada mais há ao que este possa ser ligado. Face a ele não há esquiva possível que leve a outra coisa. Aquilo que é próprio do espaço, é necessário que se mostre a partir dele mesmo. Deixar-se-á isto dizer em propriedade?
Em face da necessidade de tal questionamento, teremos que confessar:
Enquanto não fizermos a experiência da propriedade do espaço, falar de um espaço da arte mantém-se obscuro. A maneira como o espaço comporta e atravessa a obra de arte fica, para começar, na ambiguidade.
O espaço, no interior do qual a construção plástica <plastiche Gebilde> pode ser encontrada como um objecto dado, o espaço que engloba os volumes da figura, o espaço que persiste entre os volumes – estes três espaços, na unidade do seu entrelaçamento recíproco, não são somente restos do único espaço físico-técnico, mesmo se cálculos aritméticos não intervenham no advir da obra de arte na figura?
Uma vez aceite que a obra de arte é um pôr-se em obra da verdade, e que verdade designa o não-velamento do ser, não resulta então que na obra das artes plásticas seja o espaço igualmente verdadeiro, aquele que se abre naquilo que tem de mais próprio, que vem dar a medida?
Contudo, como encontrar o próprio do espaço? Haverá um trilho, estreito e casual, com toda a certeza. Arrisquemos a escuta da língua.
De que fala ela na palavra espaço? Aí fala o espaçamento. Isto quer dizer: desbravar, abrir caminhos inóspitos <die Wildnis freimachen>. Espaçar comporta o livre, o aberto, para um estabelecer e um habitar do homem.
Espaçar é, literalmente, a libertação de lugares nos quais os destinos do homem que habita se cultivam, na ocasião de uma estadia, ou na infelicidade de um desterro, ou mesmo na indiferença a respeito dos dois.
Espaçar, é a libertação do lugar onde um deus aparece, lugar donde os deuses se retiraram, lugar onde a aparição do divino tarda longamente.
Espaçar, comporta assim a localidade <Ortschaft> que, a cada vez, prepara uma estadia. Os espaços profanos não serão mais que a privação de um longínquo pano de fundo de espaços consagrados.
Espaçamento é libertação de lugares.
No “espaçar” fala e protege-se, de uma só vez, um ter-lugar. Esta premissa própria ao espaçamento facilmente nos escapa. E se disto nos apercebemos, continua difícil de defini-lo, na medida em que o espaço físico-técnico passa pelo espaço ao qual toda a determinação do espacial, desde logo, se atém.
HEIDEGGER, Martin. Die Kunst und der Raum, Erker-Verlag, St. Gallen, 1969