"[...]mas faz-nos esboçar uma realidade supra-sensível compatível com o uso experimental da nossa razão. Sem uma tal precaução, não saberíamos fazer o mínimo uso de semelhante conceito e deliraríamos ao invés de pensarmos.[...]"

19
Jul 09
Portanto, visamos provar que o fundamento da determinação completa e geral de uma forma corporal não repousa exclusivamente na relação e na situação das suas partes, umas em relação às outras, mas, além disso, numa relação que mantém com o espaço absoluto e geral, tal como os geómetras o representam, e embora esta relação não possa ser percebida imediatamente, podem ser aquelas diferenças entre corpos que dependem única e exclusivamente deste fundamento. Quando duas figuras, traçadas numa superfície plana, são iguais e similares, sobrepõem-se. Já o mesmo não acontece com a extensão corporal ou mesmo com linhas e planos que não se encontram numa superfície plana. Podem ser completamente iguais e similares e, contudo, ser em si mesmas tão diferentes que os limites de uma não podem ser, simultaneamente, os limites da outra. Uma porca cuja rosca se direcione da direita para a esquerda nunca entrará num parafuso cujo fio da rosca esteja orientado da esquerda para a direita, não obstante a sua espessura, altura e número de voltas iguais. Um triângulo esférico pode ser completamente igual e similar a outro, sem, no entanto, o recobrir. Temos, ainda, o exemplo mais comum e claro nos membros do corpo humano, que são ordenados simetricamente no plano vertical do mesmo. A mão direita é igual e similar à esquerda, e se olharmos apenas para uma delas isoladamente, para a proporção e situação recíproca das partes e para a grandeza do todo, uma descrição completa de uma também é inteiramente válida para a outra.
 
[382] Designo um corpo completamente igual e similar a outro, e que, mesmo assim, não pode ser incluído nos mesmos limites, como a sua réplica incongruente. Para demonstrar a sua possibilidade suponha-se um corpo que não é constituído por duas partes ordenadas simetricamente, em relação a um plano de intersecção único, digamos, uma mão humana. Faça-se partir de todos os pontos da sua superfície linhas perpendiculares a um quadro que se dispôs à sua frente, e prolongue-se estas linhas por detrás do quadro, até uma distância idêntica à que o separa dos pontos situados à sua frente; os pontos terminais das linhas, assim prolongadas, constituem, depois de unidos, uma figura corporal que é a réplica incongruente da figura anterior, quer dizer: se a mão dada é uma mão direita, a sua réplica é uma mão esquerda. O reflexo de um objecto no espelho assenta nos mesmos fundamentos. Pois o objecto aparece sempre atrás do espelho na mesma distância em que se encontra diante dele, e, por isso, a imagem de uma mão direita nele será sempre a de uma esquerda. Se o próprio objecto é composto de duas metades de réplicas incongruentes, como o corpo humano, quando este se divide por um corte vertical da frente para trás, então aí a sua imagem é-lhe congruente, o que facilmente se percebe quando o pensamos a dar meia volta; dado que a réplica da réplica de um objecto lhe será, necessariamente, congruente.
 
Isto deve ser suficiente para apreender a possibilidade de espaços completamente iguais e similares e mesmo assim incongruentes. Passemos agora à utilização filosófica destes conceitos. Já é evidente nos exemplos comuns das duas mãos que a figura de um corpo pode ser completamente similar à figura de outro, sendo também a grandeza da sua extensão totalmente igual, de tal modo que reste ainda uma diferença interna, a saber, que a superfície que inclui um não possa encerrar o outro. Visto que essa superfície, que limita o espaço corporal de um, não serve de limite para o outro, mesmo rodando-a e virando-a como quisermos, então essa diferenciação tem de se basear num fundamento interno. Porém, este fundamento interno da diferenciação não pode depender de modo distinto das ligações das partes do corpo umas com as outras; pois, como se viu pelo exemplo dado, a este respeito tudo pode ser completamente idêntico. Não obstante, se imaginarmos o primeiro elemento de criação como sendo uma mão humana[383], direita ou esquerda forçosamente, sendo que para a sua produção seria necessário um acto diferente da causa criadora do que aquele pelo qual a sua réplica pode ser criada.
 
Ora, se aceitarmos a concepção de muitos filósofos recentes, nomeadamente alemães, segundo a qual o espaço consistiria apenas nas relações externas das partes da matéria situadas umas ao lado das outras, então nesse caso todo o espaço efectivo seria apenas aquele que esta mão ocupa. Visto que, contudo, não há nenhuma diferença na relação das partes entre si da mesma, quer ela seja direita ou esquerda, então essa mão seria, no que se refere a essa qualidade, completamente indeterminada, isto é, ela serviria em ambos os lados do corpo humano, o que é impossível.
 
De tudo isto, ressalta claramente que as determinações do espaço não são consequência das situações das partes da matéria, umas em relação às outras, mas que estas são consequência daquelas; que, na estrutura dos corpos se podem encontrar diferenças e mesmo verdadeiras diferenças que dizem respeito ao espaço absoluto e originário, pois só ele torna possível a relação das coisas corporais. E, já que o espaço absoluto não é o objecto de uma sensação exterior, mas um conceito fundamental que, antes de mais, é dela condição de possibilidade, só podemos perceber o que, na forma de um corpo, diz respeito unicamente à sua relação com o espaço puro por oposição simétrica aos outros corpos.
 
Assim, um leitor perspicaz considerará o conceito de espaço tal como o pensa o geómetra, e também como foi adoptado nas ciências da Natureza por alguns filósofos sagazes, e não como uma simples quimera, se quiser apreender a sua realidade, que é suficientemente intuída pelo sentido interno, por via das idéias da Razão, ainda que continuem a abundar dificuldades atritas a este conceito. De qualquer maneira, sente-se este incómodo sempre que se quiser filosofar sobre os primeiros dados do nosso conhecimento, não sendo este nunca tão desagradável quanto aquele que emerge quando a experiência mais evidente contradiz as consequências de um conceito adoptado.
 
Kant, I. “Von dem ersten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume” (1768), Ak. II, pp. 375-383.
escrito por José Carlos Cardoso às 23:28

15
Jul 09

 

[377] O célebre Leibniz obteve muitos conhecimentos efectivos com os quais enriqueceu as ciências, mas ainda tinha mais ambiciosos projectos, cuja realização o mundo esperou dele em vão. Não quero aqui propor se as causas disto mesmo assentam no facto de as suas tentativas lhe parecessem demasiados incompletas, modéstia própria dos homens de mérito e que privou o conhecimento de todos os tempos de valiosos fragmentos, ou se com ele se passou aquilo que Boerhaave dizia dos grandes químicos, que alegavam frequentemente poder obter resultados como se estivessem na posse dos mesmos, quando, em rigor, encontravam-se apenas convencidos e seguros na sua capacidade técnica para produzi-los, cuja execução não poderia falhar se a quisessem empreender. Pelo menos, parece que uma certa disciplina matemática, que ele antecipadamente intitulou de analysis situs, e cuja perda foi lamentada, entre outros, por Buffon, ao considerar as dobras naturais nos embriões, nunca passou de uma ambição. Não sei ao certo em que medida a temática que aqui me disponho considerar tem afinidades com o que o grande homem mencionado tinha em mente, a julgar apenas pelo sentido das palavras; procuro aqui, filosoficamente, o primeiro fundamento de possibilidade daquilo cujas grandezas ele tencionara determinar  matematicamente. Pois a situação das partes do espaço nas suas relações recíprocas pressupõe a região em função da qual estão ordenadas segundo uma tal relação e, no sentido mais abstracto, a região não consiste na relação de uma coisa no espaço com uma outra - o que corresponde, mais propriamente, ao conceito de situação -, mas na relação do sistema destas situações com o espaço absoluto do universo. Em tudo o que seja extenso, a situação das suas partes, umas em relação às outras pode ser suficientemente conhecida pela análise da própria coisa extensa; mas a região para a qual essa ordenação das partes está orientada refere-se ao espaço fora dela e, na verdade[378], não aos seus lugares, pois isso não seria mais do que a situação das mesmas partes, encaradas numa relação exterior, mas remetendo-as a um espaço comum, enquanto unidade da qual essa extensão deve ser considerada como uma parte. Não seria estranho que o leitor achasse estes conceitos ainda demasiado incompreensíveis, os quais, desde logo, devem ser iluminados no que se segue, pelo que, nada mais acrescento, senão que o meu objectivo neste ensaio será o de investigar se nos juízos intuitivos da extensão, como os que contém a geometria, não se encontraria uma prova evidente de que o espaço absoluto, independentemente da existência de toda a matéria e inclusive como primeiro fundamento da possibilidade da sua composição, tenha uma realidade própria. É bem sabido como se revelaram em vão todos os esforços dos filósofos no sentido de colocar de vez este ponto à margem de qualquer disputa mediante os juízos mais abstractos da metafísica, e não conheço nenhuma tentativa de realizar isso como que a posteriori (a saber, através de outras proposições irrefutáveis, que na verdade se encontram elas mesmas fora do domínio da metafísica, mas podem fornecer in concreto uma prova para a sua correcção), com a excepção da dissertação do célebre Euler, o velho, na História da Academia Real de Ciências de Berlim, de 1748, que, contudo, não alcançou completamente o seu propósito, pois apenas mostra as dificuldades de se dar um significado determinado às leis mais gerais do movimento se não se aceita outro conceito de espaço a não ser aquele que procede da abstracção da relação entre coisas existentes, deixando, todavia, intocáveis dificuldades da mesma envergadura que resistem no que se atém à aplicação das leis em questão, se se quiser representá-las in concreto segundo o conceito de espaço absoluto. A prova que aqui procuro deve fornecer não aos mecânicos, como o senhor Euler pretendia, mas aos próprios geómetras uma razão convincente para que possam afirmar, com a evidência que lhes é habitual, a realidade do seu espaço absoluto. Para isso, apresento as hipóteses que se seguem.
 
   No espaço corporal, por causa das suas três dimensões, deixam-se pensar três planos, que se interseccionam todos em ângulos rectos. Uma vez que conhecemos, por via dos sentidos, tudo o que está fora de nós somente à medida que se encontra em relação connosco, não é de estranhar que para gerar o primeiro fundamento do conceito de regiões no espaço partamos da relação destes planos de intersecção com o nosso corpo.[379] O plano perpendicular ao comprimento do nosso corpo chama-se, em relação a nós, horizontal; e esse plano horizontal despoleta a diferença das regiões que designamos por acima e abaixo. Sobre esse plano podem estar dois outros, perpendiculares e cruzando-se igualmente em ângulos rectos, de maneira que o comprimento do corpo humano é pensado na linha de intersecção. Um desses planos verticais divide o corpo em duas metades exteriormente similares e dá o fundamento da diferença entre o lado direito e o esquerdo; o outro que lhe é perpendicular, faz com que possamos ter o conceito do lado da frente e de trás. Numa folha escrita, por exemplo, diferenciamos primeiramente a parte de cima e de baixo da escrita, notamos a diferença dos lados da frente e do verso, e, por fim, vemos a situação da letra da esquerda para a direita, ou vice-versa. Aqui, a situação das partes ordenadas reciprocamente sobre a superfície é sempre a mesma e constitui-se numa figura inteiramente idêntica, podendo virar-se a folha como se quiser; mas a diferença das regiões tem tanta importância nesta representação e está tão estreitamente ligada à impressão que o objecto visível produz, que a mesma escrita torna-se irreconhecível quando vista de modo em que seja volvida da direita para a esquerda tudo o que antes assumia a região oposta.
 
Mesmo os nossos juízos sobre as regiões do espaço estão subordinados ao conceito que temos das regiões em geral, enquanto estas são determinadas na sua relação com os lados do nosso corpo. O que conhecemos de outro modo, no céu como na terra, em matéria de relações, independentemente deste conceito fundamental, são unicamente as situações dos objectos, uns em relação aos outros. Por mais perfeito que seja o conhecimento que tenho da ordem das linhas do horizonte, não posso, nem por isso, determinar as regiões, a não ser que tenha consciência da mão, segundo a qual essa ordem se processa. Se, pondo de lado o caso da situação das estrelas umas em relação às outras, ou não determinasse a região pela situação do plano de um mapa em relação às minhas mãos, esse mapa do céu, por mais preciso que fosse, por mais exacto que se apresentasse ao meu espírito, não me poria em estado de saber, partindo de uma região conhecida - do norte, por exemplo - de que lado do horizonte eu teria que procurar o nascer do sol. O mesmo se passa com o conhecimento geográfico e ainda com o nosso conhecimento mais comum da situação dos lugares, que de nada nos serve, se não podermos colocar as coisas desse modo ordenadas e o todo sistemático das [380] situações recíprocas numa relação com os lados do nosso corpo de acordo com as regiões. Existe mesmo uma característica assinalável nos seres vivos, que, ocasionalmente, pode até motivar diferenciações de espécie, que consiste na região determinada para a qual a ordem das suas partes está voltada e pela qual podem diferenciar-se duas criaturas, ainda que coincidam inteiramente tanto no que respeita ao tamanho, quanto à proporção e até na situação recíproca das partes. Os cabelos no alto da cabeça de todos os homens são voltados da esquerda para a direita. Todo o lúpulo enrosca-se da esquerda para a direita no seu caule; já o feijão volta-se no sentido contrário. Com a excepção de umas três espécies, todos os caracóis têm uma torção da esquerda para a direita, quando se olha de cima, isto é, do cume até à foz. Essa qualidade determinada reside invariavelmente nessas mesmas espécies de criaturas, sem relação nenhuma com o hemisfério onde as mesmas se encontram, nem com a orientação da rotação diária do sol e da lua, que para nós vai da esquerda para a direita, mas para os nossos antípodas vai ao contrário, pois nas produções da Natureza mencionadas, a causa da circunvolução repousa na própria semente. Por outro lado, onde uma certa rotação pode ser atribuída ao curso desses corpos celestes, como a lei de Mariotte sustenta pela observação dos ventos que, da aurora ao meio-dia, da esquerda para a direita, percorreriam completamente a bússola, passando-se este movimento circular no sentido inverso quando no outro hemisfério, como também Don Ulloa pretende ter efectivamente confirmado pelas suas observações sobre os mares do sul.
 
Dado que o sentimento diverso dos lados direito e esquerdo é de tal maneira necessário para o juízo das regiões, a natureza conectou-o simultaneamente à coordenação mecânica do corpo humano, por via da qual um dos lados, a saber, o direito, tem uma vantagem indubitável em agilidade e talvez também em força sobre o esquerdo. Eis porque todos os povos da Terra são destros (não se considerando excepções isoladas, as quais, como o estrabismo, não revogam a universalidade da regra de acordo com a ordem natural). É mais fácil mover o corpo da direita para a esquerda do que o contrário quando se monta o cavalo ou se atravessa um fosso. Escreve-se por toda a parte com a mão direita, e com ela [381] se faz tudo aquilo que exige habilidade e força. Contudo, assim como o lado direito parece ter vantagem sobre o esquerdo no que diz respeito à mobilidade, o esquerdo tem-na sobre o direito no que respeita à sensibilidade, se nos dispusermos a acreditar nalguns naturalistas, como por exemplo Borelli e Bonnet, afirmando o primeiro dos quais sobre o olho esquerdo e o segundo no que respeita ao ouvido esquerdo, que nestes o sentido é mais forte do que nas estruturas análogas do lado direito. Assim sendo, os dois lados do corpo humano, apesar da sua grande similaridade exterior, são suficientemente diferenciados por uma clara sensação, mesmo que não se considere igualmente as posições diferentes das partes internas e a batida perceptível do coração, quando a cada contracção deste músculo bate do lado esquerdo do peito com a sua extremidade num movimento oblíquo.
 
Kant, I. “Von dem ersten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume” (1768), Ak. II, pp. 375-383.

 

escrito por José Carlos Cardoso às 22:48

05
Mai 09

 

Como se abre o espaço? Não resulta ele numa “localização”, e esta, por sua vez, através de um duplo modo de receber e de organizar? 

Assim, localizar possibilita qualquer coisa. Deixa-se surgir do aberto que, entre outras coisas, possibilita a aparição na presença de coisas às quais a habitação humana se encontra reenviada. 

De seguida, localizar prepara para as coisas a possibilidade de se pertencerem umas às outras, cada uma no seu lugar e a partir deste mesmo. 


No desdobramento dual deste localizar tem lugar aquilo que dá lugar. A característica deste ter-lugar é esse dar lugar. Portanto, o que é o lugar, se a sua propriedade deve ser determinada pelo fio condutor da localização que liberta? 

 

O lugar abre de cada vez uma região, na qual agrupa as coisas a partir da sua co-pertença <Zusammengehören> no seio desta.

 


No lugar faz-se o agrupamento no sentido do proteger que libera as coisas na sua região.

 

E a região? A mais antiga forma da palavra, em alemão, é «Gegnet». Esta nomeia a livre vastidão <die freie Weite>. Por ela, o aberto é remetido ao estado de deixar abrir e desabrochar cada coisa no seu próprio repouso. Isto quer dizer, ao mesmo tempo: tomar em atenção o (re)agrupamento das coisas na sua correlação <Zueinandergehören>.

 


 

Assim, a questão perfura: os lugares são pura e simplesmente resultado e produto do espaçamento? Ou, pelo contrário, o espaçamento recebe a sua propriedade (o que lhe é próprio) a partir do vigor dos lugares reunidos? Se nos aproximamos do verdadeiro, então teremos que procurar o próprio do espaçar na fundação <Gründung> de localidade, e pensar a localidade como conjugação <Zusammenspiel> de lugares.

 


 

Devemos prestar atenção ao facto e à maneira como este jogo recebe, a partir da vastidão liberta <der freien Weite> da região, o reenvio à co-pertença das coisas. Devemos aprender a reconhecer que as coisas são já de si os lugares – e não fazem senão estar situadas no seu lugar.

 


Neste caso, vemo-nos constrangidos à já antiga tarefa de focar um aspecto para lá da questão: o lugar não se encontra no interior de um espaço dado à partida, do tipo do espaço físico-técnico. Este último é que somente se desdobra a partir do vigorar dos lugares de uma região. 


 

Torna-se necessário pensar a margem de reciprocidade <das Ineinanderspiel> entre a Arte e o Espaço, a partir da experiência do lugar e da região.

 

A Arte como plasticidade: não como um manuseamento do espaço.

A escultura não será um debate com o espaço.


A escultura seria então uma incorporação de lugares que, abrindo uma região e preservando-a, teriam reunidos à sua volta qualquer coisa de livre que permite a estadia a todas as coisas e habitação ao homem no meio destas.


Que devém, assim sendo, o volume das obras plásticas que a cada vez incorpora um lugar? Sem dúvida, não delimitará uns espaços em relação aos outros, nos quais as superfícies englobariam um interior fazendo aparecer, em contrapartida, um exterior. Aquilo que é nomeado “volume” deve perder o seu nome – já que a sua significação não é mais antiga que a moderna tecno-ciência da Natureza.


A procura de lugar e a modulação de lugar, características da incorporação plástica, continuariam, assim, sem nome.


 

E que surgiria do vazio do espaço? Mormente, este aparece só como uma falta. O vazio passa, então, por defeito de preenchimento de espaços ocos <Hohlräumen> e intervalares <Zwischenräumen>.

 


No entanto, provavelmente, o vazio é o irmão da propriedade dos lugares, e, por essa razão, não um defeito, mas um pôr-a-descoberto.

 

De novo, a língua pode dar-nos um sinal. No verbo «leeren» <esvaziar> fala o «Lesen» <Ler> no sentido original de “recolher”, o recolher que vigora no lugar.

 

Esvaziar o copo quer dizer: recolhe-lo mostrando-se a devir livre no seu ser.

Esvaziar de um cesto os frutos colhidos, quer dizer: preparar-lhe esse lugar.

O vazio não é o nada. Também não é uma falta. Na incorporação plástica o vazio joga de modo a procurar o estabelecimento dos lugares pela sua abertura.


Os apontamentos precedentes não conduzem, certamente, muito longe, para mostrar, desde logo, o próprio da escultura como género das artes plásticas com clareza suficiente. A escultura: uma incorporação que põe-em-obra lugares, e com estes uma abertura de regiões para uma possível habitação dos homens e uma possível estadia das coisas que os circundam e concernem. 


A escultura: incorporação da verdade do ser na sua obra edificadora de lugares.


Um olhar cuidado sobre a propriedade da Arte deixa supor que a verdade enquanto desvelamento do ser não está necessariamente vinculada à incorporação.


Goethe diz: “Nem sempre é necessário que o verdadeiro se incorpore; basta que flutue pelos ares espiritualmente e se realize por uma electiva afinidade, que como o sincero soar uníssono preenche a atmosfera”. 

  


Sobre a arte:


Holzwege, 1950, “Der Ursprung des Kunstwerkes”, erweitert in Reclams-Universalbibliothek Nr. 8446/47 1960.

Vorträge und Aufsätze, 1954, “Dichterisch wohnet der Mensch”.


  

Sobre o espaço:

 

 Sein und Zeit, 1927, §§ 22-24, Die Räumlichkeit des Daseins.

Vorträge und Aufsätze, 1954, “Bauen – Wohnen – Denken”.

Gelassenheit, 1959, Aus dem Feldweggespräch über das Denken.

 

 

 

HEIDEGGER, Martin. Die Kunst und der Raum, Erker-Verlag, St. Gallen, 1969

 


 

escrito por José Carlos Cardoso às 21:33

04
Mai 09

 

Para Eduardo Chillida

 

 

 

Quando pensamos muito por nós próprios,

encontramos muita sabedoria inscrita na língua. 

É certamente pouco verosímil que lhe transportemos

 tudo nós mesmos; porque efectivamente muita

 sabedoria está lá – assim como nos provérbios.

 

G. Chr. Lichtenberg

 

Δοκει̃ δέ μὲγα τι εί̃ναι καὶ χαλεπὸν ληφθη̃ναι ο̉ τόπος

(“Parece ser qualquer coisa de grande importância,

e difícil a apreender, o topos – i.é. o espaço-lugar.”)

 

Aristóteles, Física IV   


 

 

Estas notas a propósito da arte, a propósito do espaço, a propósito do entrelaçamento do seu jogo recíproco, são e continuam a ser questões, mesmo se são enunciadas sob o modo afirmativo. Elas limitam-se às artes plásticas, e mais precisamente à escultura. 

O que a escultura forma plasticamente são corpos. A sua massa, consistindo em diversos materiais, é formulada multiplamente. A formulação tem lugar numa delimitação, que é inclusão e exclusão em relação a um limite. Desta maneira, o espaço entra em jogo. Ele é ocupado pela forma plástica, recebe a sua marca como volume fechado, volume atravessado de aberturas e volume vazio. Estado de coisas bem conhecido, e contudo repleto de enigmas.

 

O corpo plástico incorpora qualquer coisa. Incorporará o espaço? A escultura é um manuseamento sobre o espaço, uma dominação deste? A escultura responde assim à conquista científico-técnica do espaço?

 

 

Certamente, como arte, a escultura está em debate <Auseinandersetzungcom o espaço da arte. A arte e a técnica científica consideram e adaptam o espaço a partir duma intenção diversa e de maneiras diferentes. 

 

 

Mas e o espaço – continua o mesmo? Não é este espaço que recebeu a sua primeira determinação de Galileu e de Newton? O espaço – esta extensão uniforme, do qual nenhum sítio é privilegiado, equivalente em todas as direcções, mas não perceptível pelos seus sentidos?

 

O espaço – que provoca entretanto, e numa medida crescente, sempre mais obstinadamente o homem moderno à sua dominação última e absoluta?

As artes plásticas modernas não obedecem também a esta provocação, na justa medida em que se compreendem como debate com o espaço? Não se encontram assim confirmadas no seu carácter actual

 

Portanto, será que o espaço do projecto físico-técnico, qualquer que seja a sua possível determinação, pode assumir-se como o único verdadeiro espaço? Comparados com ele, todos os outros espaços adjacentes – o espaço da arte, o espaço da vida corrente com as suas acções e deslocações – são somente formas primitivas e transformações subjectivamente condicionadas da objectividade de um único espaço cósmico?

 

Que seria se a objectividade desse espaço cósmico fosse irresistivelmente o correlato da subjectividade de uma consciência perfeitamente estrangeira aos séculos que precederam a Modernidade europeia?

 

Mesmo reconhecendo a diversidade da experiência espacial nos séculos passados, adquirimos dessa maneira um primeiro olhar sobre a propriedade do espaço? A questão do que é o espaço como espaço não foi, por isso mesmo, ainda esboçada – e ainda menos solucionada. Continua confuso de que maneira o espaço é, e mesmo se, absolutamente, um ser lhe pode ser atribuído.

 

 

O espaço – faz parte dos Urphänomenen <fenómenos Origináriosno contacto dos quais, segundo uma expressão de Goethe, quando os homens chegam a compreendê-los, uma espécie de temor que pode ir até à angústia os submerge? Dado que por trás do espaço, ao que parece, nada mais há ao que este possa ser ligado. Face a ele não há esquiva possível que leve a outra coisa. Aquilo que é próprio do espaço, é necessário que se mostre a partir dele mesmo. Deixar-se-á isto dizer em propriedade?

 

 

Em face da necessidade de tal questionamento, teremos que confessar: 

Enquanto não fizermos a experiência da propriedade do espaço, falar de um espaço da arte mantém-se obscuro. A maneira como o espaço comporta e atravessa a obra de arte fica, para começar, na ambiguidade. 

 

 

O espaço, no interior do qual a construção plástica <plastiche Gebildepode ser encontrada como um objecto dado, o espaço que engloba os volumes da figura, o espaço que persiste entre os volumes – estes três espaços, na unidade do seu entrelaçamento recíproco, não são somente restos do único espaço físico-técnico, mesmo se cálculos aritméticos não intervenham no advir da obra de arte na figura?

 

Uma vez aceite que a obra de arte é um pôr-se em obra da verdade, e que verdade designa o não-velamento do ser, não resulta então que na obra das artes plásticas seja o espaço igualmente verdadeiro, aquele que se abre naquilo que tem de mais próprio, que vem dar a medida?

 

Contudo, como encontrar o próprio do espaço? Haverá um trilho, estreito e casual, com toda a certeza. Arrisquemos a escuta da língua. 

 

De que fala ela na palavra espaço? Aí fala o espaçamento. Isto quer dizer: desbravar, abrir caminhos inóspitos <die Wildnis freimachen>. Espaçar comporta o livre, o aberto, para um estabelecer e um habitar do homem. 

 

Espaçar é, literalmente, a libertação de lugares nos quais os destinos do homem que habita se cultivam, na ocasião de uma estadia, ou na infelicidade de um desterro, ou mesmo na indiferença a respeito dos dois.

Espaçar, é a libertação do lugar onde um deus aparece, lugar donde os deuses se retiraram, lugar onde a aparição do divino tarda longamente.

 

Espaçar, comporta assim a localidade <Ortschaftque, a cada vez, prepara uma estadia. Os espaços profanos não serão mais que a privação de um longínquo pano de fundo de espaços consagrados. 

 

Espaçamento é libertação de lugares.

No “espaçar” fala e protege-se, de uma só vez, um ter-lugar. Esta premissa própria ao espaçamento facilmente nos escapa. E se disto nos apercebemos, continua difícil de defini-lo, na medida em que o espaço físico-técnico passa pelo espaço ao qual toda a determinação do espacial, desde logo, se atém.

 

 

HEIDEGGER, Martin. Die Kunst und der Raum, Erker-Verlag, St. Gallen, 1969

 

 

escrito por José Carlos Cardoso às 23:11

07
Abr 09

Segunda Parte 

 

O que é a imanência? uma vida… Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, tendo em conta o artigo indefinido como indício do transcendental. Um canalha, um sujeito execrável, desprezado por todos, é trazido a morrer, e dá-se que aqueles que dele cuidam manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do moribundo. Toda a gente se atém a salvá-lo, ao ponto de no mais profundo do seu coma o homem vil sente qualquer coisa de doce a penetrá-lo. Mas, à medida que ele volta à vida, os seus salvadores devém mais frios, e ele reencontra toda a sua grosseria, a sua maldade. Entre a sua vida e a sua morte há um momento que mais não é que uma vida jogando com a morte [4]. A vida do indivíduo dá lugar a uma vida impessoal e, portanto, singular, que solta um puro acontecimento liberto dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjectividade e da objectividade do que acontece. «Homo tantum», ao qual todos se compadecem e que atinge uma espécie de beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para lá do bem e do mal, porque só o sujeito que a incarna no meio das coisas a torna boa ou má. A vida de uma tal individualidade apaga-se em proveito da vida singular imanente a um homem que já não tem nome, ainda que não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida…
Não é preciso conter uma vida no simples momento em que a vida individual afronta a morte universal. Uma vida está por todo lado, em todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que mensuram tais objectos vividos: vida imanente transportando os acontecimentos ou singularidades que mais não fazem que se actualizar nos sujeitos e nos objectos. Esta vida indefinida não tem momentos nela mesma, por mais próximos que eles sejam uns dos outros, mas somente entre-tempos, entre-momentos. Ela não antecede nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio onde vemos o acontecimento ainda a vir e já passado, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet Holenia mete o acontecimento num entre-tempos que pode abarcar regimentos inteiros. As singularidades ou acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes da vida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles comunicam entre si de maneira totalmente diversa dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular possa desbordar de toda a individualidade ou de qualquer outro concomitante que a individualiza. Por exemplo, as crianças mais pequenas assemelham-se e normalmente não têm individualidade; mas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjectivas. As crianças mais pequenas são atravessadas por uma vida imanente que é pura potência, e mesmo beatitude através dos sofrimentos e das fragilidades. Os indefinidos de uma vida perdem toda a indeterminação na medida em que eles preenchem um campo de imanência ou, o que, estritamente, vem ao mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (contrariamente, a vida individual fica inseparável das determinações empíricas). O indefinido não marca em si mesmo uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa sem ser a determinação do singular. O Um não é o transcendente que pode mesmo conter a imanência, mas o imanente contido num campo transcendental. Um é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida… Podemos sempre invocar um transcendente que cai fora do plano de imanência, ou mesmo que a este seja atribuído, não obstante que toda a transcendência se constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a este plano [5]. A transcendência é sempre um produto de imanência. 
Uma vida não contém senão virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo que chamamos virtual não é qualquer coisa a que falta realidade, mas que opera num processo de actualização seguindo o plano que lhe dá a sua realidade própria. O acontecimento imanente actualiza-se num estado de coisas e num estado vivido que fazem que ele advenha. O plano de imanência actualiza-se, ele mesmo, num Objecto e num Sujeito, aos quais ele se atribui. Mas, tão pouco separáveis sejam eles da sua actualização, o plano de imanência é, ele mesmo, virtual, assim como os acontecimentos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda a sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. O acontecimento considerado como não-actualizado (indefinido) não tem nenhuma lacuna. É suficiente pô-lo em relação com os seus concomitantes: um campo transcendental, um plano de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida incarna-se ou actualiza-se num estado de coisas e num vivido; mas ela é, ela mesma, um puro virtual sobre o plano de imanência que nos arrasta para uma vida. A minha ferida existia antes de mim…[6]. Não uma transcendência da ferida como actualidade superior, mas a sua imanência como virtualidade sempre no âmago dum meio (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental e as formas possíveis que os actualizam e que o transformam em qualquer coisa de transcendente.
 
[4] Dickens, L’ami commun, III, ch. 3, Pléiade.
[5] Mesmo Husserl o reconhece: “O ser do mundo é necessariamente transcendente à consciência, mesmo na evidência originária, e aí fica necessariamente transcendente. Mas isto não muda nada ao facto que toda a transcendência se constitui unicamente na vida da consciência, como inseparavelmente ligada a esta vida…” (Méditations cartésiennes, Ed. Vrin, p.52). Este será o ponto de partida do texto de Sartre.
[6] Cf. Joe Bousquet, Les Capitales, Le Cercle du Livre.
 
 

DELEUZE, G. «L’immanence: une vie…» in Philosophie 47, Minuit, Paris, 1995, pp. 3-7


 

escrito por José Carlos Cardoso às 23:33

Primeira Parte 

 

 O que é um campo transcendental? Distingue-se da experiência na medida em que não reenvia a um objecto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Também se apresenta como pura corrente de consciência asubjectiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração <durée> qualitativa da consciência sem eu <moi>. Pode parecer curioso que o transcendental se defina por tais dados imediatos: falaremos de empirismo transcendental, por oposição a tudo o que faz o mundo do sujeito e do objecto. Há qualquer coisa de selvagem e poderoso neste empirismo transcendental. Não é, certamente, o elemento da sensação (empirismo simples), já que a sensação não é senão um corte na corrente de consciência absoluta. É sobretudo, por mais próximas que sejam duas sensações, a passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Assim sendo, é preciso definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem objecto nem eu <moi>, enquanto movimento que não começa nem acaba? (Mesmo a concepção espinozista da passagem ou da quantidade de potência apela à consciência). 
Mas a relação do campo transcendental com a consciência é somente de direito. A consciência não devém um facto senão aquando um sujeito é produzido ao mesmo tempo que o seu objecto, ambos fora do campo e aparecendo como «transcendentes». Pelo contrário, assim que a consciência atravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita toda ela difusa, não há nada que a possa revelar [1]. Ela não se exprime de facto a não ser reflectindo-se sobre um sujeito que a reenvia a objectos. É por isto que o campo transcendental não se pode definir pela sua consciência, ainda assim coextensiva, mas subtraída a toda a revelação. 
O transcendente não é o transcendental. Na falta de consciência, o campo transcendental definir-se-ia como um puro plano de imanência, dado que este escapa a toda a transcendência do sujeito e do objecto [2]. A imanência absoluta é nela mesma: ela não está em qualquer coisa, [relativa] a qualquer coisa, ela não depende de um objecto e não pertence a um sujeito. Em Espinosa a imanência não está na substância, mas a substância e os modos estão na imanência. Quando o sujeito e o objecto, que caem fora do plano de imanência, são tomados como sujeito universal ou objecto qualquer aos quais a imanência é ela mesma atribuída, é toda uma desnaturação do transcendental que não faz senão redobrar o empírico (como em Kant), e uma deformação da imanência que assim se encontra contida no transcendente. A imanência não se reporta a uma Qualquer coisa como unidade superior a todas as coisas, nem a um Sujeito como acto que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais imanência a outro senão a si mesma que podemos falar de plano de imanência. Da mesma maneira que o campo transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objecto capazes de o conter. 
Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada mais. Ela não é imanência à vida, mas o imanente que não está em nada é ele mesmo uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência, beatitude completas. É na justa medida em que ele ultrapassa as aporias do sujeito e do objecto que Fichte, na sua última filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser e não está submisso a um Acto: consciência imediata absoluta, da qual a actividade não mais reenvia a um ser, mas não cessa de se compor numa vida [3]. O campo transcendental devém assim um verdadeiro plano de imanência que reintroduz o espinozismo no mais profundo da operação filosófica. Não é, pois, uma aventura semelhante de que se apercebe Maine de Biran, na sua “última filosofia” (a qual estava muito cansado para levar a bom porto), quando descobre sob a transcendência do esforço uma vida imanente absoluta? O campo transcendental define-se por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida.
 
[1] Bergson, Matière et Mémoire: «como se reflectíssemos sobre as superfícies a luz que delas emana, luz que, propagando-se sempre, nunca esteve revelada», Œuvres, PUF, p. 186.
[2] Cf. Sartre, La transcendance de l’Ego, Vrin : Sartre compõe um campo transcendental sem sujeito, que reenvia a uma consciência impessoal, absoluta, imanente: em relação a esta o sujeito e o objecto são «transcendentes» (pp. 74-87). Sobre James, cf. a análise de David Lapoujade, «Le flux intensif de la conscience chez William James», Philosophie, nº 46, Junho 1995.
[3] Já na segunda introdução à Doutrina da Ciência: «a intuição da actividade pura que não é nada de fixo, mas progresso, não um ser, mas uma vida» (p.274, Œuvres choisies de philosophie première, Vrin). Sobre a vida segundo Fichte, cf. Initiation à la vie bienheureuse, Aubier (e o comentário de Gueroult, p.9).
 
 

DELEUZE, G. «L’immanence: une vie…» in Philosophie 47, Minuit, Paris, 1995, pp. 3-7



escrito por José Carlos Cardoso às 22:53

04
Abr 09

 Para breve, as traduções de L'immanence: une vie... de Gilles Deleuze, Die Kunst und der Raum de Martin Heidegger e ainda de Von dem ersten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume de Immanuel Kant.

escrito por José Carlos Cardoso às 23:12

10
Mar 09

 

Segunda Parte
 
Considerámos até agora o caso em que um actual se rodeia de outras virtualidades cada vez mais extensas, cada vez mais longínquas e diversas: uma partícula cria efémeros, uma percepção evoca recordações. Mas o movimento inverso também se impõe: quando os círculos se estreitam, e que o virtual se aproxima do actual para se distinguir dele cada vez menos. Atingimos um circuito interior que não reúne mais que o objecto actual e a sua imagem virtual: uma partícula actual tem o seu duplo virtual, que quase não se descola dela; a percepção actual tem a sua própria recordação como uma espécie de duplo imediato, consecutivo ou até simultâneo. Pois, como Bergson o mostrou, a recordação não é uma imagem actual que se formaria após o objecto percepcionado, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção actual do objecto. A recordação é a imagem virtual contemporânea do objecto actual, o seu duplo, a sua “imagem em espelho”[4]. Assim, existe coalescência e cisão, ou, melhor, oscilação, perpétuo contágio entre o objecto actual e a sua imagem virtual: a imagem virtual não pára de devir actual, como num espelho que se apodera da personagem, a engole, e que, por sua vez, não lhe deixa mais que uma virtualidade, ao estilo d'A Dama de Xangai. A imagem virtual absorve toda a actualidade da personagem, ao mesmo tempo que a personagem actual não passa de uma virtualidade. Este contágio perpétuo do virtual e do actual define um cristal. É no plano de imanência que surgem os cristais. O actual e o virtual coexistem, e entram num estreito circuito que nos reenvia constantemente de um para o outro. Já não é uma singularização, mas uma individuação como processo, o actual e o seu virtual. Já não é uma actualização mas uma cristalização. A pura virtualidade não tem já de se actualizar dado que é estritamente correlativa do actual com o qual forma o mais pequeno circuito. Já não há mais distincionabilidade do actual e do virtual, mas indiscernabilidade entre os dois termos que se contagiam. 
 
Objecto actual e imagem virtual, objecto que deveio virtual e imagem que deveio actual, estas são as figuras que aparecem já na óptica elementar[5]. Mas, em todos os casos, a distinção do virtual e do actual corresponde à mais fundamental cisão do Tempo, quando este avança diferenciando-se, seguindo duas grandes vias: fazer passar o presente e conservar o passado. O presente é um dado variável medido por um tempo contínuo, isto é, por um movimento suposto numa única direcção: o presente passa na medida em que esse tempo se esgota. É o presente que passa que define o actual. Mas o virtual aparece, por sua vez, num tempo mais pequeno que aquele que mede o mínimo de movimento numa única direcção. É por isso que o virtual é “efémero”. Mas é também no virtual que o passado se conserva, porque este efémero não deixa de lá estar no “mais pequeno” seguinte, que reenvia a uma mudança de direcção. O tempo mais pequeno que o mínimo de tempo contínuo pensável numa direcção é também o tempo mais longo, mais longo que o máximo de tempo contínuo pensável em todas as direcções. O presente passa (à sua escala), assim como o efémero conserva e conserva-se (à escala deste). Os virtuais comunicam imediatamente por cima do actual que os separa. Os dois aspectos do tempo, a imagem actual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva, distinguem-se na actualização, tendo um limite indeterminável, mas contagiam-se na cristalização, até devirem indiscerníveis, cada um ocupando o papel do outro.
 
A relação do actual e do virtual constitui sempre um circuito, mas de duas maneiras: tanto o actual reenvia para virtuais como para outras coisas em vastos circuitos, onde o virtual se actualiza, como o actual reenvia ao virtual como seu próprio virtual, nos mais pequenos circuitos onde o virtual cristaliza com o actual. O plano de imanência contêm simultaneamente a actualização como relação do virtual com outros termos, e até o actual como termo com o qual o virtual se contagia. Em todos os casos, a relação do actual e do virtual não é aquela que se estabelece entre dois actuais. Os actuais implicam indivíduos já constituídos, e determinações através de pontos vulgares; enquanto a relação do actual e do virtual forma uma individuação em acto ou uma singularização através de pontos marcantes a determinar em cada caso.
 
 
[4] Bergson, L'Énergie spirituelle, “le souvenir du présent...”, pp. 917-920. Bergson insiste nos dois movimentos, em direcção a círculos cada vez mais vastos, em direcção a um círculo cada vez mais estreito.
 
[5] A partir do objecto actual e da imagem virtual, a óptica elementar mostra em que caso o objecto devém virtual e a imagem actual, e depois, como o objecto e a imagem devêm ambos actuais ou ambos virtuais.

 

escrito por José Carlos Cardoso às 22:05

09
Mar 09
Primeira Parte
 
A filosofia é a teoria das multiplicidades. Toda a multiplicidade implica elementos actuais e elementos virtuais. Não existe objecto puramente actual. Todo o actual se rodeia de um nevoeiro de imagens virtuais. Este nevoeiro investe circuitos coexistentes mais ou menos extensos, sobre os quais as imagens virtuais se distribuem e planam. É assim que uma partícula actual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes ordens. Eles são chamados virtuais porquanto a sua emissão e absorção, a sua criação e destruição se fazem num tempo mais pequeno que o mínimo de tempo contínuo pensável, e que esta brevidade os mantém desde logo sob um princípio de incerteza ou de indeterminação. Todo o actual se rodeia de círculos de virtualidade sempre renovados, em que cada um emite um outro, e todos rodeiam e reagem sobre o actual (“ao centro da bruma do virtual está ainda um virtual de ordem mais elevada... cada partícula virtual rodeia-se do seu cosmos virtual e cada uma, por sua vez, faz o mesmo, indefinidamente...[1]”). Em virtude da identidade dramática dos dinamismos, uma percepção é como uma partícula: uma percepção actual rodeia-se de uma nebulosidade de imagens virtuais que se distribuem por circuitos móveis, cada vez mais afastados, cada vez mais amplos, que se fazem e se desfazem. São recordações de diferentes ordens: são chamadas imagens virtuais na medida em que a sua velocidade ou a sua brevidade as mantém aqui sob um princípio de inconsciência. 
 
As imagens virtuais são tão pouco separáveis do objecto actual como este daquelas. As imagens virtuais reagem assim sobre o actual. Deste ponto de vista elas medem, no conjunto dos círculos ou em cada círculo, um continuum, um spatium determinado em cada caso por um máximo de tempo pensável. A estes círculos mais ou menos extensos de imagens virtuais, correspondem camadas mais ou menos profundas do objecto actual. Estas formam a impulsão total do objecto: elas mesmas camadas virtuais, e nas quais o objecto actual devém, por sua vez, virtual[2]. Objecto e imagem são aqui ambos virtuais, e constituem o plano de imanência onde se dissolve o objecto actual. Mas o actual passou então por um processo de actualização que afecta a imagem assim como o objecto. O continuum de imagens virtuais é fragmentado, o spatium é segmentado segundo decomposições regulares ou irregulares do tempo. E a impulsão total do objecto virtual estilhaça-se em forças correspondendo ao continuum parcial, em velocidades que percorrem o spatium segmentado[3]. O virtual nunca é independente das singularidades que o segmentam e dividem no plano de imanência. Como o mostrou Leibniz, a força é um virtual em curso de actualização, assim como o espaço no qual ela se desloca. O plano divide-se, portanto, numa multiplicidade de planos, seguindo os cortes do continuum e as divisões da impulsão que marcam uma actualização de virtuais. Mas todos os planos não fazem senão um, seguindo a via que conduz ao virtual. O plano de imanência compreende simultaneamente o virtual e a sua actualização, sem que possa haver um limite determinado entre os dois. O actual é o complemento ou o produto, o objecto da actualização, sendo que esta tem por sujeito somente o virtual. A actualização pertence ao virtual. A actualização do virtual é a singularidade, enquanto que o próprio actual é a individualidade constituída. O actual cai fora do plano como um fruto, enquanto que a actualização o reporta ao plano como àquilo que reconverte o objecto em sujeito.
 

 [1] Michel Cassé, Du vide et de la création, Odile Jacob, pp. 72-73. E o estudo de Pierre Lévy, Qu'est-ce que le virtuel?, Éditions de la Découverte.

 [2] Bergson, Matière et mémoire, Édition du Centenaire/PUF, p. 250 (os capítulos II e III analisam a virtualidade da recordação e a sua actualização).

 [3] Gilles Châtelet, Les Enjeux du mobile, Éditions du Seuil, pp. 54-68 (das “velocidades virtuais” aos “cortes virtuais”).

escrito por José Carlos Cardoso às 19:31

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