para a prof.ª Fernanda Henriques
Ordet de Dreyer trata do sopro, da cisão e da queda. Da luz na escuridão, lux in tenebris. Tudo se passa no lusco-fusco da razão, numa ida aos infernos pela pergunta ao que não pode ser respondido, do indefinível ou a-proposicional, como o salienta Agamben, pela derradeira tentativa de nomeação, venerável hipotipose do Nome dos nomes, a Palavra.
Divina, entenda-se, porque pergunta por esta dimensão (ou pela sua ausência, pelo esvaziamento de si – um dia os deuses retiraram-se diz recentemente Jean-Luc Nancy num texto belíssimo) a Palavra de Deus cai na espiral babélica, na dor sentida da comédia humana, que a perde entre o fluxo ininterrupto das ruínas da linguagem. É o momento da cisão, de todas as cisões, da abissalidade de todas as distâncias, do corte umbilical que mudará para sempre toda a história da humanidade (Gusdorf).
E, no entanto, um corpo sofre, alucina, delira. A presença como a ausência dá-se pelo corpo, no corpo. O Verbo que devém Carne é rasurado e, portanto, o corpo alucina na sua caoticidade sem direcção nem redenção. O corpo do mundo subsiste à custa da Carne divina: hoc est corpus meum. Donde a queda dos corpos , os anjos caídos (As asas do desejo de Wim Wenders) que vagueiam pela contemporaneidade. O estranho paradoxo (que, porém, só é paradoxal para os mais desatentos) é este mesmo: da in-carnação dos corpos depende a realidade, a materialidade onto-teo-lógica do mundo.
Mesmo assim, e acima de tudo, é no espaço deste corpo que delira na sua extravagância desmantelada, desunificada, desorientada que acontece a possibilidade (é todo o problema, a possibilidade do acontecimento) do corpo glorioso, da ascensão de um corpo caído, que simultaneamente (o problema também passa por aqui, claro está, por esta ubiquidade das substâncias) é corpo do mundo e corpo de Deus.
Daí Ordet ser também um filme sobre a levitação, a leveza e a possibilidade da glória para um novo tempo, para um novo pensar.
Este texto, escrito no começo de 2005, serviu, nada mais nada menos, de resposta à primeira pergunta do exame de Filosofia da Religião, no meu último ano de licenciatura. Encontrei a cópia que a então regente da cadeira, e agora minha amiga me fez semanas depois, no meio de papéis dessa época, quando hoje procurava um ensaio de Kant. Aparece aqui sem modificações abrindo a secção Pequenos textos sobre grandes filmes.