"[...]mas faz-nos esboçar uma realidade supra-sensível compatível com o uso experimental da nossa razão. Sem uma tal precaução, não saberíamos fazer o mínimo uso de semelhante conceito e deliraríamos ao invés de pensarmos.[...]"

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Abr 09

Segunda Parte 

 

O que é a imanência? uma vida… Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, tendo em conta o artigo indefinido como indício do transcendental. Um canalha, um sujeito execrável, desprezado por todos, é trazido a morrer, e dá-se que aqueles que dele cuidam manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do moribundo. Toda a gente se atém a salvá-lo, ao ponto de no mais profundo do seu coma o homem vil sente qualquer coisa de doce a penetrá-lo. Mas, à medida que ele volta à vida, os seus salvadores devém mais frios, e ele reencontra toda a sua grosseria, a sua maldade. Entre a sua vida e a sua morte há um momento que mais não é que uma vida jogando com a morte [4]. A vida do indivíduo dá lugar a uma vida impessoal e, portanto, singular, que solta um puro acontecimento liberto dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjectividade e da objectividade do que acontece. «Homo tantum», ao qual todos se compadecem e que atinge uma espécie de beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para lá do bem e do mal, porque só o sujeito que a incarna no meio das coisas a torna boa ou má. A vida de uma tal individualidade apaga-se em proveito da vida singular imanente a um homem que já não tem nome, ainda que não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida…
Não é preciso conter uma vida no simples momento em que a vida individual afronta a morte universal. Uma vida está por todo lado, em todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que mensuram tais objectos vividos: vida imanente transportando os acontecimentos ou singularidades que mais não fazem que se actualizar nos sujeitos e nos objectos. Esta vida indefinida não tem momentos nela mesma, por mais próximos que eles sejam uns dos outros, mas somente entre-tempos, entre-momentos. Ela não antecede nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio onde vemos o acontecimento ainda a vir e já passado, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet Holenia mete o acontecimento num entre-tempos que pode abarcar regimentos inteiros. As singularidades ou acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes da vida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles comunicam entre si de maneira totalmente diversa dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular possa desbordar de toda a individualidade ou de qualquer outro concomitante que a individualiza. Por exemplo, as crianças mais pequenas assemelham-se e normalmente não têm individualidade; mas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjectivas. As crianças mais pequenas são atravessadas por uma vida imanente que é pura potência, e mesmo beatitude através dos sofrimentos e das fragilidades. Os indefinidos de uma vida perdem toda a indeterminação na medida em que eles preenchem um campo de imanência ou, o que, estritamente, vem ao mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (contrariamente, a vida individual fica inseparável das determinações empíricas). O indefinido não marca em si mesmo uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa sem ser a determinação do singular. O Um não é o transcendente que pode mesmo conter a imanência, mas o imanente contido num campo transcendental. Um é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida… Podemos sempre invocar um transcendente que cai fora do plano de imanência, ou mesmo que a este seja atribuído, não obstante que toda a transcendência se constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a este plano [5]. A transcendência é sempre um produto de imanência. 
Uma vida não contém senão virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo que chamamos virtual não é qualquer coisa a que falta realidade, mas que opera num processo de actualização seguindo o plano que lhe dá a sua realidade própria. O acontecimento imanente actualiza-se num estado de coisas e num estado vivido que fazem que ele advenha. O plano de imanência actualiza-se, ele mesmo, num Objecto e num Sujeito, aos quais ele se atribui. Mas, tão pouco separáveis sejam eles da sua actualização, o plano de imanência é, ele mesmo, virtual, assim como os acontecimentos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda a sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. O acontecimento considerado como não-actualizado (indefinido) não tem nenhuma lacuna. É suficiente pô-lo em relação com os seus concomitantes: um campo transcendental, um plano de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida incarna-se ou actualiza-se num estado de coisas e num vivido; mas ela é, ela mesma, um puro virtual sobre o plano de imanência que nos arrasta para uma vida. A minha ferida existia antes de mim…[6]. Não uma transcendência da ferida como actualidade superior, mas a sua imanência como virtualidade sempre no âmago dum meio (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental e as formas possíveis que os actualizam e que o transformam em qualquer coisa de transcendente.
 
[4] Dickens, L’ami commun, III, ch. 3, Pléiade.
[5] Mesmo Husserl o reconhece: “O ser do mundo é necessariamente transcendente à consciência, mesmo na evidência originária, e aí fica necessariamente transcendente. Mas isto não muda nada ao facto que toda a transcendência se constitui unicamente na vida da consciência, como inseparavelmente ligada a esta vida…” (Méditations cartésiennes, Ed. Vrin, p.52). Este será o ponto de partida do texto de Sartre.
[6] Cf. Joe Bousquet, Les Capitales, Le Cercle du Livre.
 
 

DELEUZE, G. «L’immanence: une vie…» in Philosophie 47, Minuit, Paris, 1995, pp. 3-7


 

escrito por José Carlos Cardoso às 23:33

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