escrito por José Carlos Cardoso às 23:22
sinais: cinematic orchestra, música
Um dos meus blogs favoritos está em road-trip, o que, no caso, significa devir aquilo que é. Eu pelo menos sempre o li assim.
Fui levar com a maresia na cara e ouvir este senhor a Espinho.
Adenda (24.07.08). Muito mais arrojado jazzisticamente e menos melódico do que eu esperava, continuam a tocar de olhos fechados. Todo um concerto assente num saber depurado dos elementos em jogo, e na sua incessante (re)construção e desconstrução (que nunca é um factor lúdico), até ao limite onde o sentido do todo (da composição) se identifica com os elementos desconexos, caóticos - o caos como génese de toda a composição - sem, no entanto, se confundir com a soma dessas partes. Como um tratado sobre um método do qual não se sabe a aplicação.
Relativamente a esta pergunta (lícita, absolutamente) -
Nalguns momentos, é lícito perguntar se estes textos mesmo sobre cinema, no mesmo sentido em que também perguntamos isso sobre os célebres livros de Deleuze; com efeito, Zizek usa e abusa dos filmes, fazendo digressões imprevisíveis e colagens de ideias estonteantes.
- dizer, tão somente, que não sendo nenhuma das digressões (a de Deleuze e a de Žižek) livros sobre cinema (no seu sentido mais vulgar), um abismo as separa: Žižek faz um tratado de antropologia de abordagem psicanalítica, enquanto que os dois volumes de Deleuze seriam o penúltimo passo decisivo na construção de uma ontologia que, justamente, deitaria por terra (entre outras coisas bem mais incrustadas no subsolo dogmático do pensamento ocidental) toda a pretensão antropologista.
P.S. Referir ainda, en passant, que quando Deleuze dizia que era necessário e benéfico haver leituras e apropriações não-filosóficas da filosofia (inclusive da sua), estava também a dizer o mesmo em relação a criações não-artísticas e não-científicas da filosofia a partir destas.
O olhar do outro como testemunha. Catherine Deneuve em Je veux voir de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige.
Já regressado de Vila do Conde não posso deixar de tentar esboçar sentidos de algumas imagens que, de alguma maneira, resistem. Como sou guloso saboreio bastante antes de engolir (ou a maneira de funcionar do espírito ruminante segundo Nietzsche).
O festival acabou com um objecto cinematográfico absolutamente contemporâneo. Je veux voir de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige nasce de "um sentimento de urgência", tempo vertical à procura de imagens que o consigam absorver. Numa entrevista a Claire Vassé os cineastas questionam-se que fazer e como face às "imagens espectaculares da televisão", paradoxalmente irreais e com um efeito calmante e anestésico*, que imagens para tal realidade (a devastação provocada pela guerra), que imagens para uma coisa que está aqui, que entra por nós adentro e que, ao mesmo tempo, é inapreensível e inapropriável?
Deneuve diz que não sabe se vai "entender alguma coisa, mas quer ver". O tour de force feito neste filme que se constitui em pôr o outro no coração do real (a ficção como único acesso possível a uma imagem real), dar a ver com e através do outro, dota o filme, no extremo limite da ficção e para lá de toda a pretensão realista, de uma realidade que de tão distante pertence a todos nós. Face à apaziguadora neutralidade das imagens televisivas que dão conta da realidade, querer ver nos olhos do outro.
Aquilo que se quis ver, a urgência de outros olhos (os olhos do mundo) está nas imagens finais, na "partilha de sensibilidade" entre Catherine e Rabih, na possibilidade dessa partilha, no olhar como possibilidade.
*José Gil, no congresso internacional Culturas, Metáforas e Mestiçagens (Évora, Maio de 2004), no qual também participei, pensou de forma tão urgente como genial as condições da experiência real da recepção das imagens de guerra. Infelizmente ainda inédito.
Ontem, o acontecimento denominava-se Martin Arnold (n. 1959), cineasta de Viena, dotado de um experimentalismo na linha do seu conterrâneo Peter Tscherkassky ou do belga Nicolas Provost, ambos já focados no Curtas em anos anteriores. A masterclass serviu de introdução ao seu modus operandi, apoiada com o visionamento de algumas das suas curtas. Seguiu-se uma visita guiada pelo próprio à sua exposição na Solar, de que falarei mais tarde.
Durante todo o dia de hoje tive que me ausentar do festival e, por isso, infelizmente perdi a masterclass de Yu Lik-Wai que deve ter sido um óptimo complemento à retrospectiva da sua obra que acontece até sábado. Volto logo à noite.
P.S. Se, no domingo, diverti-me uns instantes a tentar perceber quem poderia ser a C., antes do começo do filme,desde ontem a blogosfera conta com mais um representante.
Depois do meu atraso crónico no primeiro dia do festival (sábado, 05), o dia seguinte pautou-se essencialmente por duas agradáveis surpresas que consistiram na amostra da cinematografia de Lisandro Alonso (n. 1975, Buenos Aires) e na primeira longa-metragem de Liew Seng Tat (n.1979, Malásia), outro nome a reter no panorama criativo do novo cinema asiático.
Ontem, e depois da primeira sessão da competição internacional, assistiu-se ao primeiro grande momento do festival, com a ante-estreia em Portugal do filme de Miguel Gomes (n. 1972, Lisboa) Aquele querido mês de Agosto (Quinzena dos Realizadores, Cannes'08), visão inspirada do país profundo, filmada no limite do registo documental e da ficção, que, dissolvendo as duas fronteiras, se revela, nos melhores momentos, uma tragicomédia de contornos absolutamente singulares. Ficamos, pois, à espera do percurso comercial que um objecto desta natureza pode fazer no nosso país. A noite acabou, seguindo a recomendação do próprio realizador, e dando seguimento ao espírito do filme, num confronto de karaoke com programadores do festival, casting do filme, realizadores convidados, júris e participantes cinéfilos. Mais uma querida noite de verão na província, portanto.
Esta tarde já teve mais dois focos do meu interesse, isto é, mais dois filmes de mais dois novíssimos realizadores asiáticos (não é coincidência): a segunda longa de Lee Kang-Cheng (n. 1968, Taipé), actor-fetiche e discípulo de Tsai Ming-Liang, de que espero poder escrever em debate com a obra do mestre, nomeadamente com a instalação que este traz ao festival, Erotic Space; e o arranque da primeira retrospectiva integral na Europa da obra de Yu Lik-Wai (n. 1966, Hong Kong), com All Tomorow's Parties, que revela já toda a potência imagética do cineasta, mas de que só falarei no fim do ciclo.
Agora tenho mesmo que ir, porque a festa continua.
Parto, dentro de momentos, para Vila do Conde, para acompanhar o 16º Curtas - Festival Internacional de Cinema que decorrerá até ao próximo dia 13 de Julho. Há muitas (mas muitas) coisas boas este ano, aliás, como já se tornou hábito. Prometo, se as ligações à web ajudarem e o caos constitutivo neste tipo de coisas não se intrometer demasiado, ir dando conta do que se passa. Senão, digo de minha justiça quando voltar. Até já.
Intervenção de Peter Greenaway sobre o fresco d'A Última Ceia de Leonardo Da Vinci, no Convento Dominicano de Santa Maria de Grazie em Milão.
E qual é a explicação para esses insucessos?
Há circunstâncias várias. Você imagina que é uma questão que não pode ser respondida com meia dúzia de tretas. Como é que hei-de pôr o problema? Espinosa, designadamente na leitura que Deleuze faz dele, põe-se a questão de saber como é possível transformar um colectivo de humanos não num conjunto de escravos, mas numa assembleia de homens livres. Esse é o verdadeiro problema, que está inscrito na história humana e ao qual o marxismo procura decisivamente responder e tornar mesmo na teoria uma questão prática.
Manuel Gusmão em entrevista a Luís Miguel Queirós (Público, 27 de Junho de 2008). Escolhi o excerto acima pelos poucos dias que o separam do que escrevi aqui, mas recomenda-se a leitura integral.